Andreia Pereira
Após nove meses de gestação, eis que surge finalmente o momento tão aguardado: o parto. Mas se, para uns, o acto de cortar o cordão umbilical não passa de um gesto simbólico, há outros que nele vislumbram uma nova fonte de vida. As células estaminais do sangue do cordão umbilical são, desde há uns anos, alvo de investigações no mundo inteiro. E, embora ainda não sejam a receita mágica para todas as maleitas, em certos casos, já ajudaram a salvar vidas.
Em 2003, aquando do nascimento do filho mais velho, Isabel Araújo não equacionava a hipótese de recorrer às células estaminais do sangue do cordão umbilical, pelo menos num futuro próximo. "Decidi criopreservar, por julgar que, dada a evolução científica, dentro de uns anos as células estaminais poderiam vir a ser úteis no tratamento de doenças corriqueiras da sociedade actual."
Dois anos mais tarde, em 2005, nasce Frederico Manuel, o segundo filho de Isabel Araújo. Como havia congelado as células estaminais do primeiro filho, optou novamente pela criopreservação. Nunca imaginou que as células conservadas dois anos antes viessem a ser a peça-chave no tratamento do filho recém-nascido. Acontece que, por força das circunstâncias, Frederico veio a ser o destinatário das células estaminais. Não das suas, por transportarem a sua doença genética, mas as do irmão mais velho.
"O Frederico teve um crescimento normal até ao primeiro trimestre de vida. Aos seis meses, depois de ter tido alguns problemas respiratórios, apresentava um quadro clínico complicado", diz Isabel Araújo, farmacêutica. No hospital de Coimbra, foi então detectada uma pneumonia extensa, resultante de uma imunodeficiência adquirida. Perante o diagnóstico, Frederico foi imediatamente sujeito a um internamento hospitalar, porque, paralelamente às frequentes infecções, o corpo rejeitava os alimentos.
"Os médicos indicaram logo como solução o transplante de medula óssea. E os estudos de histocompatibilidade revelaram que o irmão mais velho poderia ser dador de Frederico", acrescenta. Acontece que, quando se colocou a hipótese de realizar o transplante com as células estaminais do primeiro filho, Isabel Araújo não hesitou em responder afirmativamente. "Com estas células, pudemos ajudar o Frederico a ter uma cura com sucesso, sem necessidade de sujeitar o irmão mais velho e saudável a uma hospitalização."
Em Fevereiro de 2007, Frederico, a primeira criança portuguesa a receber um transplante de células estaminais do cordão umbilical, criopreservadas num banco privado, começou uma nova vida. Após a "transfusão" com as células do irmão mais velho, no IPO do Porto, para onde foi transferido, seguiu-se, ainda, um "processo lento de recuperação".
Agora, passado um ano e meio do "susto", Isabel Araújo não podia estar mais segura de que fez a escolha certa. "Foi uma sorte termos criopreservado as células estaminais." Actualmente com três anos, a criança já brinca, mantém o contacto com outras crianças e tem a qualidade de vida que não tinha antes do transplante. "O Frederico não tinha leucócitos [glóbulos brancos] e, hoje em dia, depois da intervenção, essas células já estão em número normal para uma criança com o escalão etário dele."
"Sangue do meu sangue"
Apesar de esta ser uma história com um final feliz, nem todos os casos têm o mesmo desfecho. Isto porque, "tipicamente, há uma probabilidade de 25% de os familiares directos, dadores de células estaminais do cordão umbilical, serem compatíveis", assegura o Prof. José Conde Belo, do IBB/CBME, Universidade do Algarve e membro da Sociedade Portuguesa de Células Estaminais e Terapia Celular.
O especialista salienta, no entanto, que "este caso de sucesso mostra como as células estaminais do sangue do cordão umbilical são uma boa fonte e devem ser preservadas". Sendo estas células "mais plásticas do que as da medula óssea", apresentam um maior potencial de cura nas situações de doença hematopoiética (sanguínea).
O Dr. Hélder Cruz, responsável pela ECBio, uma empresa de investigação em terapias celulares, reitera esta tese. "Dizem alguns autores que as células estaminais do sangue do cordão umbilical são mais bem toleradas pelo sistema imunitário do receptor do que as células da medula óssea." Para além disso, não obrigam a uma histocompatibilidade de 100%, como acontece com o transplante de medula. É, por esta razão, que José Belo diz ser "mais fácil encontrar um dador de células do cordão umbilical do que da medula óssea".
Com a criopreservação, acresce ainda o facto "de serem as células a aguardar o doente e não o inverso", diz Hélder Cruz, reportando casos em que o doente aguarda meses ou anos por um dador compatível. Mas, na opinião do responsável da ECBio, as vantagens não se ficam por aqui. "Embora consista apenas numa punção dos ossos da bacia, a colheita da medula é mais invasiva para o dador. O procedimento é mais facilitado com as células estaminais do sangue do cordão umbilical, porque estas já se encontram armazenadas e, após isolamento, prontas a serem utilizadas, bastando para isso a administração das células isoladas no receptor."
Por serem mais "imaturas", "as células estaminais do sangue do cordão umbilical têm um maior potencial de diferenciação em qualquer tipo de células da linhagem hematopoiética" assegura José Belo. Quer isto dizer que, embora não sejam um seguro biológico contra todas as doenças, permitem oferecer a cura em dezenas de situações patológicas do foro sanguíneo, nomeadamente as leucemias, os linfomas, as anemias, entre outras.
Guardar ou não guardar: eis a questão
Para muitos pais, esta é a pergunta que se levanta antes do nascimento do seu filho. Valerá a pena criopreservar? "Há apenas uma probabilidade de um em cada 20 mil casos de as células preservadas poderem vir a ser utilizadas pelo próprio (transplante autólogo). Porém, defende José Belo, "a criopreservação funciona como um seguro: se realmente a sua utilização for necessária, e possível, estão lá". E, em certas situações como a do Frederico, poderão ter utilidade para familiares de primeiro grau.
Já Hélder Cruz diz que, embora para já não haja "promessas milagrosas", a ciência está em constante descoberta das potencialidades destas células. É deste modo que se apresenta como um apologista acérrimo da criopreservação. "Sou completamente a favor da conservação de materiais biológicos enquanto se é saudável, mesmo sabendo de antemão de que estas células não concedem uma protecção total."Para o responsável da ECBio, conservar as células estaminais do sangue do cordão umbilical "é mais uma arma terapêutica", no caso de ocorrer um problema grave de saúde. José Belo partilha desta opinião e acrescenta, ainda, que, à semelhança de outros países europeus, este material biológico deveria ser criopreservado num banco público, servindo a generalidade da população que, eventualmente, necessite de células compatíveis para um transplante.
Acontece que, em Portugal, esta medida ainda não passou do papel, mesmo tendo já sido apresentada uma proposta.
O que são células estaminais
Por serem imaturas e indiferenciadas, as células estaminais têm a capacidade de reconstruírem funcionalmente qualquer tecido in vivo. Há, no entanto, três classificações de células estaminais, de acordo com o seu potencial de diferenciação:
- Células estaminais embrionárias (no topo da hierarquia): fazem parte do "botão embrionário" e são consideradas "pluripotentes", porque, devido à sua plasticidade, conseguem dar origem a qualquer tipo de tecidos. A utilização destas células envolve, contudo, questões ético-legais;
- Células estaminais do sangue do cordão umbilical: tecido líquido que se obtém do cordão umbilical por um processo de centrifugação. As células de interesse são colhidas, depois quantificadas e, posteriormente, criopreservadas em azoto líquido no período de 25 anos (o tempo máximo, até agora testado, que garante a qualidade deste material biológico). Estas células, pertencentes à linhagem hematopoiética, conseguem-se diferenciar em qualquer célula do foro sanguíneo;
- Células estaminais adultas: existem nichos destas células em alguns órgãos do adulto. Contudo, por já serem parcialmente diferenciadas, só conseguem originar um conjunto restrito de tecidos específicos.
Embora não sejam um seguro biológico contra todas as doenças, permitem oferecer a cura em dezenas de situações patológicas do foro sanguíneo, nomeadamente as leucemias, os linfomas, as anemias, entre outras.
"As células estaminais do sangue do cordão umbilical têm um potencial de diferenciação em qualquer tipo de células da linhagem hematopoiética [sanguínea]" José Belo
Fonte: Jornal do Centro de Saúde