Quando se fala em toxicodependências, não raras vezes se pensa em substâncias ilegais mas há outras legais que deixam sequelas no humor.
Basicamente são três os tipos de substâncias capazes de provocar alterações no estado de espírito de quem as consome de uma forma abusiva: psicanalépticas, psicodislépticas e psicolépticas. Mal-usadas, além de criarem dependência, podem causar perturbações no humor, bem como acentuar ou esconder outras patologias mentais. Por exemplo, entre os toxicodependentes é mais frequente do que se julga a doença bipolar.
Traduzindo para uma linguagem mais simples, as substâncias psicanalépticas são os estimulantes, as psicodislépticas ou psicadélicas provocam perturbações das percepções, e as psicolépticas são sedativas. Conheça mais sobre cada uma delas...
Substâncias psicanalépticas
«Quando se abusa de estimulantes é de esperar que haja um efeito psicoestimulante com manifestação, nomeadamente desinibição e exaltação do humor», refere o Dr. Luís Patrício, psiquiatra, director do CAT das Taipas, em Lisboa, sublinhando que «numa fase inicial estas substâncias deixam o consumidor desinibido, com algumas, até eufórico, e mais tarde é que se dá uma alteração inversa».
Existem, contudo, indivíduos que, por sofrerem de perturbações do humor, são medicados com antidepressivos, que também são psicanalépticos, com a finalidade de tratarem uma anomalia do foro psíquico.
Todavia, uma situação é usar as substâncias por imperativos de saúde e com acompanhamento médico, outra é usar (e abusar) das mesmas.
Ora, os indivíduos que não sofrem de perturbações do humor mas que usam essas substâncias estão a alterar o próprio funcionamento mental e a criar um ciclo de dependência. Isto porque, com o consumo continuado e abusivo, suportam mal a ausência de estimulantes. Quanto às substâncias propriamente ditas, a cocaína e as anfetaminas servem para exemplificar.
«A cocaína tem um efeito muito rápido e as anfetaminas uma acção mais prolongada», diz Luís Patrício, prosseguindo:
«A privação aguda destas substâncias, em doentes com dependência estabelecida, implica uma vivência depressiva. A vacuidade que é experimentada pelo doente é muito intensa, por isso temos de estar atentos para a probabilidade de risco de suicídio ou de comportamentos perigosos que possam surgir na ânsia de procurar nova dose de cocaína.»
Existem substâncias também estimulantes e de consumo diário que estão legalizadas, como a nicotina e a cafeína. Contudo, «apesar de terem uma acção estimulante, diferem bastante da cocaína e das anfetaminas a nível de efeitos, na criação de dependência e nos sintomas de ausência de consumo», explica o psiquiatra, que acrescenta:«No consumo de nicotina e cafeína não se coloca questões ao nível de grave perturbação mental, embora nós todos conheçamos alguém que seguramente sente algum mal-estar quando deixa de fumar ou quando não bebe o café a que está habituado. Pode inclusive surgir uma certa irritabilidade na privação destas substâncias.»
Substâncias psicolépticas
Responsável pela morte lenta ou rápida de inúmeros indivíduos, que a começaram por fumar e só depois a injectar, a heroína é talvez o melhor exemplo de uma substância psicoléptica. «De acção tranquilizante, o que mais nos preocupa em relação aos opiáceos, é o potente efeito sedativo, muito grave na situação de overdose», comenta o mesmo psiquiatra.
«Mas, antes de ter um efeito sedativo», continua, «a heroína causa euforia, sendo por isso responsável pela relação de maior proximidade que o consumidor vai estabelecendo com a substância até à criação da dependência».
Neste seguimento, de acordo com Luís Patrício, «na ausência de consumo de heroína, a pessoa dependente pode apresentar um quadro crónico de perturbação de humor, que nada tem a ver com a depressão, mas como se fosse uma deficiência, ou seja, como se, sem aquela substância não conseguisse viver. Por isso é que as terapias de substituição ao opiáceo têm um resultado bastante favorável».Substâncias psicodislépticas
Comparativamente com LSD, o nome dietilamida do ácido lisérgico não é associado a nenhuma droga. Pois é, ambos significam o mesmo e são o exemplo mais típico de uma substância psicodisléptica, assim como o popular ecstasy (também anfetamínico) e as pastilhas similares.«Tanto o LSD como outros “ácidos” são substâncias que perturbam o funcionamento do cérebro e provocam graves alterações da percepção e do pensamento entre as quais causando alucinações, delírios e ilusões», sustenta Luís Patrício, salientando:«Mas, entre nós, a substância psicodisléptica mais frequentemente consumida em abuso é o THC ou tetraidrocannabibol, que existe no haxixe, a resina da cannabis.»
E continua: «No consumidor crónico de haxixe, encontramos um quadro sintomatológico, síndrome amotivacional, que não responde de uma forma brilhante à terapêutica farmacológica com antidepressivos, sendo, por isso, necessário que o doente faça um afastamento do consumo de haxixe para poder reencontrar a capacidade de sentir e a vivacidade que não consegue ter sob o efeito desta substância.»
Recuperar o humor perdido
«As substâncias não são más em si, ou seja, são o que são. A atitude das pessoas perante aquilo que existe é que pode ser adequada ou danosa para a saúde», afirma o psiquiatra.
Sendo uma substância medicamentosa, prescrita pelo profissional de saúde, à partida, o uso será adequado, pois, o especialista objectiva melhorar a condição de vida do doente. Pior, é quando o consumo é feito indiscriminadamente, sem ser como terapêutica, sejam substâncias legais e ilegais como de certos medicamentos...
«O indivíduo que faz um consumo de abuso tem que ser ajudado a compreender que esse consumo é de certo modo uma resposta que encontra perante uma determinada dificuldade», explica o director do CAT das Taipas.
Assim, conforme o psiquiatra, «quando propomos que o doente modifique aquela resposta danosa para a saúde, temos de procurar uma alternativa suficientemente confortável e adequada para que não recue para a resposta danosa».
Também pode acontecer que as substâncias ilícitas sejam usadas como autoterapia, devido a perturbações de humor, que poderão esconder uma patologia mais grave. Só depois de se suspender o consumo é que será possível diagnosticar uma doença psiquiátrica, como a esquizofrenia ou a doença bipolar.
Por isso, segundo este psiquiatra, «para devolver à pessoa a responsabilidade de gerir a sua vida e contribuir para que não volte aos consumos de abuso, é importante perceber o que está por detrás dos consumos, assim como compreender a própria psicopatologia que possa advir dos próprios consumos».
Alguns doentes são acompanhados durante um longo período, nomeadamente, até o terapeuta considerar que estão criadas as condições psicológicas e psicossociais para a estabilização do humor.
Neste sentido, Luís Patrício defende a prescrição de determinados fármacos como instrumentos de preparação para a posterior ruptura com o consumo de abuso.
«Vamos pensar num doente psicótico que teve a infelicidade de fazer consumos de heroína», começa por exemplificar o nosso interlocutor, continuando:
«Com este opiáceo, além do bem-estar, o doente também pode sentir um apaziguamento da sua doença. O tratamento dos sintomas é também o que se pretende com a medicação adequada à patologia. Mas, se os fármacos têm eficácia terapêutica, têm também efeitos secundários desagradáveis, como seja a secura da boca, obstipação, aumento de peso. Assim, entramos numa área de concorrência entre a terapêutica medicamentosa prescrita e cuidada e o uso abusivo de uma substância ilegal.»
Desta forma, tanto o tratamento como o acompanhamento de um especialista são factores chave para o abandono do consumo de substâncias prejudiciais e para a recuperação do humor perdido.
E depois do tratamento?
Dependência rompida e tratamento terminado poderão ficar sequelas, que não são notadas pelos outros muito facilmente.
«Os indivíduos, que durante muitos anos foram toxicodependentes, podem manter uma certa tristeza, como se colocassem a si próprios um estigma interno», menciona Luís Patrício.
«Há inclusive quem utilize esta noção para fazer vincar diariamente que ainda sofre de uma doença. Compreendo, mas na minha opinião se a doença foi tratada, não está activa ou não existe. Porém, não se excluí uma recaída», acrescenta o psiquiatra, frisando ser importante «não colocar rótulos, nem o de ex-toxicodependente, aos ex-consumidores de substâncias ilícitas, como se fossem menos válidos porque tiveram uma “fractura” psíquica».
O apoio da sociedade a estes indivíduos é essencial para o sucesso do tratamento. Pode, aliás, ser o desfecho da terapêutica. Por exemplo, um doente em fim de tratamento, poderá recair mais facilmente se não for reintegrado ao nível social e profissional, consoante as suas capacidades e responsabilidades.
Consequências sociais, familiares e profissionais
Nas primeiras vezes em que um indivíduo faz um mau uso de uma substância, provavelmente nem imagina o desfecho da situação se continuar a consumir. Apesar de conhecer o final triste de algumas histórias, julga que aquele destino não lhe estará reservado. Pode até nem estar, mas é apenas a probabilidade menos certa... se continuar a consumir.
A situação de dependência de psicoestimulantes – cocaína, anfetaminas – pode atingir níveis de disfunção de tal ordem que a própria pessoa não é capaz de gerir os próprios consumos nem a sua actividade de relação. Portanto, pode perder o controlo porque, acima de tudo, necessita de se sentir estimulada.
«No âmbito da dependência de substâncias psicolépticas, a uma certa altura, haverá uma franca perda da capacidade de executar a actividade laboral, pois a pessoa fica, cada vez mais, num estado sedado», garante Luís Patrício.
título de exemplo, o mau uso no consumo endovenoso pode causar infecções, abcessos, feridas que, por sua vez, conduzem à exclusão social. O toxicodependente não dá importância às feridas, pois os opiáceos ajudam a suportar a dor.
Por último, entre nós, o consumo de substâncias psicodislépticas, para além do haxixe e da cannabis, não costuma ser diário, sendo normalmente feito durante o fim-de-semana.
«O ecstasy ou as pastilhas são drogas ditas recreativas, de lazer e diversão. Sob efeito destas substâncias, diminui manifestamente o nível de responsabilidade, e de consciência podendo haver alteração da percepção. Por exemplo, pode acontecer que os consumidores não meçam o risco e dancem descalços em cima de chapas de ferro velho e vidros», diz o psiquiatra.
«O consumo», continua, «sendo feito em ciclos, aos fins-de-semana, leva a que muitos consumidores, no domingo, necessitem de fazer medicação sedativa ou de consumir uma substância sedativa ilícita para ficarem sedados, pois o estado de excitação é intenso. A experiência vai se transformando num ciclo frenético de consumo».
A dependência mais frequente dos portugueses
Luís Patrício não deixou de mencionar uma outra dependência que, nas suas palavras, «está relacionada com a substância que mais mau uso e abuso tem em Portugal e que mais danos provoca a nível individual, social e familiar. Refiro-me ao álcool».
As bebidas alcoólicas têm uma característica curiosa. Acontece que o consumo abusivo confere os três efeitos já abordados: psicanaléptico, psicodisléptico e psicoléptico.
«Com uma dose acima da moderada, é obtido um efeito estimulante, uma euforia exacerbada. Havendo continuidade deste consumo, ocorre uma intoxicação, acompanhada de uma manifesta perturbação, inclusive com alterações da percepção da realidade. Continuando a insistir no consumo, surge o estado sedativo, porventura a anestesia ou coma», explica o especialista.
Enquanto de início, o consumo de álcool é propagandeado por muitos consumidores, mais tarde é dissimulado.
«O doente alcoólico é uma pessoa isolada, porventura abandonada, com enormes dificuldades de prestação de actividade profissional. A vida familiar é caótica e há variadas repercussões directas e indirectas, como sejam, os acidentes rodoviários ou as doenças hepáticas», indica o psiquiatra, que menciona um facto:
«Enquanto a promoção para o consumo de substâncias ilícitas é feita “de boca em boca”, a promoção do álcool passa pela publicidade. Veja-se, por exemplo, a criação das ladys-night, que fomentam o consumo e de forma gratuita, nas senhoras.»
E desmistifica algumas crenças: «O álcool não aquece; não abre o apetite, embora seja chamado de aperitivo; não promove a digestão, mas há quem o chame de digestivo; não dá força, inteligência ou memória, pelo contrário; e do ponto de vista sexual, aumenta o desejo mas diminui a capacidade.»
Outras dependências
As sociedades evoluem, sendo também inevitável um processo evolutivo nas dependências. «A saúde mental é uma área em que não pode deixar de olhar para as substâncias de abuso e para os comportamentos aditivos com uma atenção muito particular», refere Luís Patrício, explicando:
«Não se trata só da substância. Hoje em dia ocupamo-nos de outras dependências, que também são muito danosas, como a da Internet ou do jogo.»
Num centro equivalente ao CAT das Taipas, em Paris, foi criado uma consulta para os utilizadores compulsivos de Internet. Esta dependência é até bastante complexa, na medida em que pode ter associadas outras dependências. Por exemplo, os cibernautas podem recorrer a estimulantes, nomeadamente anfetaminas, para se manterem activos horas a fio em inúmeras relações virtuais.
Fonte: Medicina & Saúde